Theodore Simon, cirurgias, epidemias e a miséria humana no front

Luiz Henrique Santana
5 min readJul 25, 2021

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Da série #OsVeteranosdasGuerrasPsíquicas

Figura 1. Théodore Simon com paciente. Fonte: Archives of the History of American Psychology, The University of Akron. Link para imagem: https://www.intelltheory.com/simon.shtml

Théodore Simon foi um médico-cirurgião e psicólogo francês eternizado na história da psicologia por sua coautoria com Alfred Binet de uma das primeiras e mais notórias escalas de inteligência (Binet & Simon, 1905; 1908; 1911). Em 1899, Simon começou um trabalho clínico mais dedicado ao estudo de crianças com “desenvolvimento anormal” (Gutierrez, 2017) e foi este tópico que chamou o interesse de Binet para o trabalho de Simon. A partir de 1903, os dois trabalhariam juntos na Sociedade Livre para o estudo psicológico da criança onde identificariam a necessidade de construir uma ferramenta para identificar crianças com necessidades educacionais especiais que pudesse oferecer uma maneira de identificar formas de promover e facilitar o desenvolvimento destas crianças (Klein, 2018). Esta escala tomaria o nome dos dois (Escala Simon-Binet para mensuração da inteligência; Wolf, 1961) que seria publicada na revista L’Année psychologique, fundada por Binet em 1895.

A escala de inteligência de Simon-Binet utilizava sub-testes para medir a performance de crianças em relação a habilidades como a nomeação de dígitos, cópia do losango, ditado de uma frase, repetição de 5 dígitos, identificação de imagens, entre outros. Os testes poderiam ser realizados com crianças entre 3 e 13 anos, variando em graus de dificuldade progressivamente maior conforme a maior idade, e eram normalizados para essas populações. O impacto da escala Simon-Binet de inteligência foi profundo na psicologia de sua época e reverbera na psicometria e em escalas atuais até os dias atuais (Nicolas et al, 2013). Binet acabaria falecendo em 1911 em decorrência de um aneurisma cerebral. O trabalho de desenvolvimento da escala ficaria à cargo do psicólogo alemão William Stern e do parceiro de Binet, Théodore Simon. Contudo, este último enfrentaria dificuldades no desenvolvimento da escala nos primeiros anos sem Binet, pelo seu serviço militar junto ao exército francês durante a primeira grande guerra.

Figura 2. A. Fachada do hôpital auxiliaire de Sens. B. ambulância similar aquela onde trabalhava Simon junto à 5ª divisão do exército Francês. C. Fachada do hôpital auxiliaire d’Issy-les-Moulineaux onde simon atuou no fim da guerra. Imagens coletadas do Acervo Nacional do Governo Francês.

Simon foi um dos psicólogos desta série que atuou mais tempo e mais ligado ao front da guerra, totalizando um tempo de mobilização de quatro anos e meio entre 1914 e 1919. Em 1914, foi alocado como médico cirurgião assistente do hôpital auxiliaire de Sens, na abadia de Igny (próximo à Reims, no norte da França). Neste hospital, era responsável por avaliar o quadro clínico e as competências intelectuais de pessoas acometidas pela epidemia de Tifo que acometeu aproximadamente 25 milhões de pessoas na Europa entre 1917 e 1925. além de ter matado um montante de 3 milhões de pessoas. A tifo é uma doença infecciosa causada pela bactéria Rickettsia prowazekii e que se espalha por pulgas e piolhos humanos. Seu espalhamento é decorrente das péssimas condições sanitárias dos fronts e trincheiras da guerra que submetiam os novos recrutas e as pessoas afetadas pela economia da guerra. Entre os principais sintomas estão dor de cabeça, febre alta, lesões de pele que se espalham rapidamente e que tem como consequências duradouras a perda auditiva, prejuízos motores e vestibulares (isto é, de equilíbrio), neuropatias periféricas e eventualmente até amputação de membros (Gutierrez, 2013). Nesta posição, Simon era responsável por determinar quem dos acometidos pela Tifo poderiam ser alocados no front para lutar pelo exército francês. Reencontrando nas trincheiras a mesma miséria que os levaram a contrair a tifo.

Em 1916 foi realocado para atuar na Ambulance 11/3 de la 5e armée onde prestava serviços como cirurgião aos feridos da linha de frente e servindo de testemunha ocular para as carnificinas do campo de batalha. Os registros documentais das atuações de Simon neste período encontram-se preservados em relatórios mantidos pelo Arquivo Nacional da França (https://www.siv.archives-nationales.culture.gouv.fr/siv/rechercheconsultation/consultation/ir/pdfIR.action?irId=FRAN_IR_013925).

Seu último campo de atuação na Guerra foi o hôpital auxiliaire d’Issy-les-Moulineaux, em Paris, onde trabalhou como médico assistente de primeira classe. Neste momento, apesar de persistir mobilizado para o esforço de guerra até 1919, Simon pode se dividir entre as atividades no hospital e o ensino da pedagogia experimental na École Normale d’Institutrices des Batignolles (em Paris) dedicando-se à elaboração de currículos voltados à identificação de demandas educacionais especiais e desenhando currículos para o ensino de todos os tipos de alunos em suas especificidades individuais e com uma postura anti-patologização da diversidade de perfis educacionais.

Figura 2. Simon (de preto à frente e sentado) na primeira escola de formação profissional de enfermeiras de Paris, escola que levaria o nome dele após sua morte. Link para foto online: http://psychiatrie.histoire.free.fr/pers/bio/simon.htm.

A carreira de Simon no pós-primeira guerra se dividiu entre a prática médica, a liderança de instituições médicas e científicas relevantes na França, fundou a L’Ecole d’Infirmières de Maison-Blanche, editor do Bulletin da Sociedade Alfred Binet além de diversas outras posições que assumiria ao longo dos anos. Continuaria sua carreira científica publicando trabalhos apresentando a escola “métrica” ou psicometricista como pensada por ele e por Binet e defendendo a incompletude de seu trabalho frente a comunidade científica. Simon repetiria em diversas ocasiões como o entusiasmo com a escala, fez a comunidade perder de vista a necessidade de usá-la como um recurso para entender as nuances pedagógicas e curriculares que seriam exigidas para se ensinar crianças com necessidades especiais. A anormalidade de Simon era um conceito mais descritivo que normativo, e seria nada se não um recorte de um momento que deveria servir como um primeiro passo no caminho para o desenvolvimento de uma educação mais inclusiva e pautada nos avanços da ciência da psicologia e das ciências naturais. Um valoroso desfecho na carreira de um combatente do púlpito e do front.

Referências

Binet, A., & Simon, Th. (1905a). New methods for diagnosing the idiot, the imbecile, and the moron. In Sante de Sanctis (Ed.), Atti del V congresso internazionale di psicologia tenuto in Roma dal 26 al 30 aprile 1905 sotto la presidenza del Prof Giuseppe Sergi (pp. 507–510). Rome, Italy: Forzani.
Binet, A.; Simon, Th. (1905b). “New methods for the diagnosis of the intellectual level of subnormals”. L’Annee Psychologique. 11: 191–244.
Binet, A.; Simon, Th. (1908). “The development of intelligence in children”. L’Annee Psychologique. 14: 1–94.
Binet, A.; Simon, Th (1911). “The measure of the development of the intelligence in young children”. Bulletin de la Société Libre pour l’Étude de l’Enfant. 11: 187–256.
Archives Nationales. (2015). Guerre 1914–1918. État civil des régiments, ambulances et hôpitaux militaires, 12º ed. Seine: Archive Nationales de France.
Gutierrez , L. (2017). Théodore Simon et les mystères de l’âme humaine. La Pensée , 391, 80–91. https://doi.org/10.3917/lp.391.0080
Klein , A. (2018). Théodore Simon (1873–1961). Itinéraire d’un psychiatre engagé pour la professionnalisation des infirmiers et infirmières d’asile. Recherche en soins infirmiers, 135, 91–106. https://doi.org/10.3917/rsi.135.0091
Nicolas, S., Andrieu, B., Croizet, J. C., Sanitioso, R. B., Burman, J. T. (2013). Sick? Or slow? On the origins of intelligence as a psychological object. Intelligence, 41(5), 699–711. DOI: 10.1016/j.intell.2013.08.006.
Wolf, T. H. (1961). An individual who made a difference. American Psychologist, 16(5), 245–248. https://doi.org/10.1037/h0044555

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Luiz Henrique Santana

Neuropsicólogo e Neurocientista. Divulgador Científico. Poeta de quinta. Bailarino de terceira. Tentando ser um pai de primeira.